Operação Marquês: Mas afinal, o que é o princípio do Juiz Natural?

Jeremias foi acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de branqueamento de capitais e um crime de fraude fiscal qualificada. Em face dessa Acusação, decide ir ter com o seu advogado e ambos analisam o processo. Entretanto, verificaram que o sorteio do juiz de instrução, na fase de inquérito, foi feito por atribuição manual. Quais os problemas que isto levanta?

 

A decisão instrutória do juiz Ivo Rosa no âmbito da Operação Marquês ainda está a ser analisada, já que são muitas as páginas que compõem a mesma. No entanto, há uma especificidade que ali ressalva e que é da máxima importância. Segundo a decisão, entre setembro de 2014 e abril de 2015, o juiz 1 do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) (Carlos Alexandre) recebeu 26 processos por distribuição eletrónica (sorteio), 33 por sorteio manual e 56 por atribuição manual. Na mesma altura, ao juiz 2 do TCIC, foram distribuídos 26 processos por distribuição eletrónica (sorteio), 38 por sorteio manual e 72 por atribuição manual.

O problema é que foram verificadas “situações em que no mesmo dia foi utilizada a modalidade de distribuição eletrónica e a modalidade de distribuição manual, o que evidencia que em 9 de setembro de 2014 [dia distribuição da Operação Marquês] o sistema eletrónico estava em perfeito funcionamento, aliás como confirmado”. Pior mesmo é que, como consta da decisão instrutória, “verifica-se, também, a existência de situações em que o mesmo processo foi distribuído eletronicamente ao juiz 2 e no dia seguinte surge como distribuído, por manual atribuição, ao juiz 1″.

 

O princípio do Juiz Natural
Estabelece o número 9 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.”

O objetivo deste princípio constitucional visa, em matéria de garantias de processo penal, evitar a designação arbitrária ou a escolha discricionária de um juiz ou tribunal para a análise, tramitação processual e julgamento de uma determinada causa, assim proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a escolha de determinados tribunais e/ou juízes. 

Deste modo, pretendem-se acautelar efeitos perversos no âmbito penal, prevendo a Lei mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz de uma determinada causa. Obviamente, este não é o único mecanismo a fazê-lo, sendo importante ressalvar as questões relativas aos impedimentos, suspeições, escusas e recusas. 

Assim, o princípio do juiz natural visa, sobretudo acautelar a lógica de um processo justo e equitativo em que qualquer decisão que é tomada ao longo do processo conserva as garantias de objetividade e imparcialidade e, portanto, de validade das decisões ali constantes.

 

O que está em causa?
Há jurisprudência e doutrina que entendem que, o ato processual de distribuição de um determinado processo, não constitui uma extensão do princípio do juiz natural, pois que se trata de um mero meio aleatória de distribuição e divisão interna da carga de trabalho existentes num determinado tribunal.

No entanto, é inegável que, no caso do Tribunal Central de Instrução Criminal, quando cerca de metade dos processos seguem uma via de atribuição manual mesmo estando o sistema em funcionamento, alguma coisa está errada ou não é explicada. Não há muito tempo, no âmbito da Operação Lex, verificou-se como juízes desembargadores no Tribunal da Relação de Lisboa, usavam este sistema de atribuição manual para colocar em causa este mesmo princípio do juiz natural. 

Obviamente que, a falta de um mecanismo aleatório de atribuição de processos, levanta dúvidas. É que, o que está em causa, não é a mera distribuição interna de processos mas, antes de mais, as próprias dúvidas e receios sobre a concreta realização da Justiça. Quando alguém, com base neste subterfúgio da distribuição dos processos, consegue “escolher” o juiz, por saber sobre a sua posição num determinado tema de Direito ou o considerar mais ou menos “alinhado” com a posição assumida, então, assiste-se a um “tirar a venda” da Justiça e denegar a mesma. 

A demonstrar-se uma situação deste género, além da questão criminal que se levanta (favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça e prevaricação, etc.), há ainda a questão sobre como tal afeta o processo. No nosso entender, estaríamos claramente perante uma nulidade insanável, uma vez que a alínea e) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, estabelece que, “constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: e) a violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º.” No caso, estaríamos perante a violação das regras de competência do tribunal internamente e no âmbito da distribuição de trabalho realizada internamente. Assim, demonstrando-se a quebra do princípio do juiz natural, estaríamos perante uma nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência em sentido estrito e não em sentido lato. Sabemos não ser um entendimento pacífico mas, qualquer outro entendimento, não nos parece conforme com as garantias constitucionais. 

 

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